quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Euro e o Esperanto

por Gustavo Franco*
A idéia de que o mundo tem moedas demais, ou talvez países demais, se parece com outra, bem mais antiga, remontando a Descartes e Leibniz: a de que, como temos línguas demais, um idioma completamente artificial, com uma gramática simplificada e fácil de aprender, poderia servir para unir as nações. O mais antigo desses esforços é do bispo John Wilkins, de 1668, mas inúmeros outros se seguiram. A 14ª edição da Enciclopédia Britânica registra, por exemplo, o solresol (1817), a lingualumina (1875), a blaia zimondal (1884), a zahlensprache (1901), além de uma dúzia de outras. A mais bem-sucedida delas todas, o esperanto, de 1887, foi ganhando adeptos numa escala impressionante até os anos 20. Mais de 30.000 livros foram publicados para o esperanto, diversas variantes desenvolvidas (dutalingue, adjuvilo, intal, dentre inúmeras outras) e, ainda hoje, estima-se que mais de 2 milhões de pessoas o tenham como sua segunda língua.

Algumas obras de ficção criaram idiomas artificiais, como a famosa novilingua do romance 1984 e o idioma de gírias falado em A Laranja Mecânica. Mas curioso mesmo é o caso da língua falada no império Klingon, inventada em 1984 por um doutor em lingüística de nome Marc Okrand para o filme Jornada nas Estrelas III: à Procura de Spock. Fãs do seriado reúnem-se em inúmeros clubes, convenções e sites, e patrocinam encontros, saraus e até casamentos em que as pessoas conversam em klingon. Existem jornais em klingon, cursos da língua oferecidos por um instituto sediado na Pensilvânia, o qual está prestes a completar a tradução para essa língua das obras de Shakespeare e da Bíblia.

Todavia, o triste fato é que as línguas universais, a despeito de todas as suas vantagens teóricas, não tiveram muita aceitação. No terreno dos idiomas, como no das moedas, parece prevalecer uma espécie de meritocracia, que os economistas designam pela expressão "externalidades de rede", que o pessoal do e-commerce conhece muito bem. O conceito é simples: quanto mais gente usa, mais fácil e barato de usar. Esses "retornos crescentes de escala", para usar mais um vocábulo em economês (uma dessas línguas artificiais não tão malsucedida quanto as outras), resultam em estabelecer padrões. Como hoje são o dólar e o inglês. Por isso se usa o VHS (para os videocassetes) e não o Betamax, que era melhor, e um teclado para máquinas de escrever cuja seqüência de letras (qwerty, como está na segunda fila, da esquerda para a direita) não tem nenhuma razão de ser.

Mas vagrave;s moedas do mundo: quando a União Soviética se desintegrou em duas dezenas de novas repúblicas, cada qual com sua moeda nova, em substituição ao rublo, ninguém achou que estavam sendo criadas "moedas demais". Essa tese apareceu depois, pelas mãos dos defensores do euro, uma moeda artificial regional para a qual não há mesmo muito precedente. É certo que ainda existem os Direitos Especiais de Saque (DES) junto ao FMI que foram concebidos para servir como uma "moeda internacional de reserva" inteiramente artificial. O FMI, ainda hoje, faz sua contabilidade em unidades de DES, mas emissões de DES só ocorreram em duas ocasiões, a última em 1977, e eles jamais circularam como meios de pagamento a varejo.

O euro, além de artificial, é a primeira moeda emitida por um banco central supranacional, o banco central europeu, do qual diversos países são sócios no sistema de "um país, um voto". O mesmo que a Federação Carioca de Futebol adotou depois que a Guanabara se fundiu ao Estado do Rio de Janeiro. Antes, os clubes votavam conforme o número de campeonatos ganhos, os grandes mandavam e o futebol era mais alegre. Depois, cada um dos sessenta e tantos clubes do interior passou a ter um voto, e o resultado foi a ascensão do Doutor Caixa d'Água. Com ênfase nos pequenos, o futebol carioca não experimentou muito progresso.

A médio prazo, o banco central europeu pode ter problemas de governança e outros relacionados com o fato de que, qualquer que seja o padrão, o dólar, o euro ou o esperanto, não é bom negócio abandonar a língua natal, como perceberam os dinamarqueses.
*Gustavo Franco é Eonomista

Nenhum comentário: