quarta-feira, 6 de julho de 2011

Risadinha

por Marçal Aquino*  

Sempre tive consciência de que o fato de ter nascido "na roça", como se diz, foi decisivo para que eu me tornasse escritor. Nasci e passei a primeira infância em fazendas que meu pai administrou na região de Amparo, no interior paulista. Por falta de televisão, que só entrou na minha vida ali pelos doze anos (e não fez falta nenhuma, para falar a verdade), fui exposto aos causos e à mitologia rural. Uma espécie de literatura oral, que misturava o real e o lendário nas conversas de fim de noite. Relatos saborosos que combinavam o acontecido e o imaginado. Coisas que, mais tarde, me fizeram ficar com vontade de contar histórias em livros.
Como acontece na tradição oral, algumas dessas narrativas eram repetidas anos a fio, sempre acrescidas de novos detalhes e deliciosas distorções. Aperfeiçoava-se o causo. Já não importava a verossimilhança ou a veracidade, apenas o prazer de quem contava e de quem ouvia. Com isso, algumas versões fantasiosas adquiriam ares de fato real, confirmando aquela máxima do cineasta John Ford: "Quando a lenda é mais forte que a verdade, imprima-se a lenda".
Verdade ou não, eram histórias sobretudo muito engraçadas. Como a de um aparentado nosso, trambiqueiro que só ele, que teve a idéia de pintar de preto um cavalo baio, na tentativa de transformar em garanhão um animal que todos conheciam como um legítimo pangaré, O plano era vendê-lo a uns ciganos que andavam pela região. Eu não me lembro direito dos detalhes, mas parece que choveu muito no dia da venda e a fraude derreteu-se diante dos olhos do vendedor malsucedido e das gargalhadas dos ciganos.
De outro causo envolvendo esse nosso parente, porém, eu me lembro bem. Também tem animal no rolo, desta vez um burro. Um burro com uma característica marcante: nascera com os beiços atrofiados e exibia os dentões o tempo todo, como se estivesse rindo de algo muito engraçado ao seu redor – talvez das tentativas inúteis de fazê-lo trabalhar, coisa a que aquele muar singular não era muito chegado. Nosso parente o recebera de contrapeso numa permuta de animais, e o bicho já veio com nome: Risadinha, claro.
O dono fracassou em diversas tentativas de desfazer-se do burro: todo mundo implicava com a falta de beiços de Risadinha. Não aceitaram trocá-lo nem por uma espingarda seminova, da Revolução de 32. Não era um burro, era um "mico".
Um dia apareceu na fazenda um viajante, pediu pouso e na hora da janta falou de seu interesse em adquirir umas "alimárias". Nosso parente viu aí sua grande chance de livrar-se de Risadinha. Como o homem partiria logo cedo no dia seguinte, o anfitrião levou-o para o estábulo assim que terminaram o café. E exibiu seu plantel. À luz incerta de um lampião.
O viajante adorou o burro, que de fato estava saudável, forte, até um pouco gordo, já que pouco pegava no batente. Examinaram os dentes – coisa fácil naquele caso – e o homem fechou negócio, digamos, no escuro. Feliz da vida, nosso parente deu até um desconto. Acho que porque era a data de Santa Luiza, padroeira da fazenda. E antes de clarear o dia, lá se foi Risadinha com seu novo dono.
Mas ali pela hora do almoço, o homem já estava de volta na fazenda. Queria desfazer o negócio. Risadinha vinha preso numa corda e parecia muito contente com o passeio.
"Você me enganou."
"Como assim?", perguntou nosso parente na maior cara-de-pau.
"Não dá, o bicho não tem beiço", o viajante disse.
"Ué, mas você quer o burro pra beijar ou pra puxar carroça?"
Não houve acordo: nosso parente teve de restituir o dinheiro e Risadinha voltou para casa.
Não sei que fim levou o burro. Acho que morreu de velhice na fazenda. Lembro-me de vê-lo solto, vagabundeando pelo pasto, enquanto seus companheiros trabalhavam pesado. Sempre com aqueles dentões à mostra, como se achasse muito engraçado o tipo de vida que eles levavam.
*Marçal Aquino é jornalista, escritor e roteirista de cinema
Fonte: http://www.geracaobooks.com.br/

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