Trocando os pés pelas mãos
Não é prioridade para o autor acompanhar em detalhes o fenômeno Tostão como atleta ímpar, campeão do mundo em 1970 pela seleção brasileira, jogador de dribles curtos, passes inteligentes, jogadas e gols sensacionais. No prefácio, Juca Kfouri não economiza o verbo: “Tostão é desses raros brasileiros capazes de jamais decepcionar. Nos gramados, está na minha seleção de todos os tempos, entre Mané e Pelé, por mais que ele, modesto, escale Romário Ronaldo.” A intenção está explícita no título, trocando os pés pelas mãos, por sinal um verdadeiro achado: acompanhar e divulgar a produção do cronista esportivo. Isso mesmo, o brilhante cronista, inicialmente revelado em Belo Horizonte nas páginas de O Estado de Minas, em 1996, posteriormente estendido para publicações de circulação nacional, como o Diário da tarde, Jornal do Brasil, o Estadão e a Folha de São Paulo. Apesar da timidez, acabou se tornando, a partir da experiência adquirida como atleta, comentarista respeitado na televisão (TV Bandeirantes na Copa de 94, depois na ESPN). A linguagem e a forma de apresentar as informações e circunstâncias que plasmaram o comentarista esportivo refinado conseguem envolver o leitor no entusiasmo pela descoberta de uma personalidade diversificada, que se desdobra em três ângulos: o jogador, o médico e o cronista. Após breve e fulminante (no sentido de intensa e explosiva) carreira como atleta, com esforço e tirocínio Tostão redimensiona sua trajetória multifacetada, desenvolvendo um percurso de sucesso em outras áreas, fruto de uma inusitada combinação de talentos.
Sem dúvida, Tostão, ou melhor, Eduardo Gonçalves Andrade, representa um caso raro de atleta de ponta que, vendo-se impossibilitado de prosseguir na carreira, após um problema físico (no caso, o deslocamento da retina), consegue se superar: enfrenta um vestibular de medicina, forma-se médico e professor da Faculdade de Medicina da UFMG. Na sequência, dedica-se à crônica esportiva. Gílson Yoshioka, o autor, comenta na Apresentação: “Durantes suas várias vidas, ele percebeu que os grandes profissionais conhecem profundamente o básico, enxergam o óbvio e fazem muito bem as coisas simples e essenciais. Além da técnica de cada atividade, esses talentos possuem conhecimentos mais amplos, de outras áreas, e maior aptidão para observar, sintetizar, decidir e criar – qualidades não aprendidas na escola – no momento certo”. Destacam-se no pesquisador a habilidade e a sensibilidade de perceber no ex-atleta e cronista especializado em abordar os detalhes técnicos dos jogos, nem sempre captados pelos outros colunistas, outras singularidades, como a capacidade de entrever as “inventivas” analogias entre o futebol e a vida, o gosto pelas citações de bons autores (Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e Carlos Drummond, entre outros). Atento à convergência entre esporte e escrita, o autor elabora análise sofisticada da crônica esportiva assinada pelo ex-craque: “Em vez de textos (ou passes) tecnicamente corretos, lineares, sem riscos, na tentativa de manter a posse de bola, ele prefere aqueles de curva, de rosca, de trivela, com as palavras (ou bola) contornando o corpo do texto (ou adversário) para chegar aos leitores (ou jogadores)”. Certeiro nas avaliações, objetivo no enfoque, abrangente nos enquadramentos, elegante no estilo, o autor traça ainda, de quebra, um rico painel da crônica esportiva brasileira. Algumas sacadas (do cronista Tostão) são geniais: “Podemos falar em drible, passe e gol, fundamentos técnicos que são característicos do belo e eficiente estilo brasileiro. O drible eficiente é seguido de um bom passe, uma certeira finalização ou às vezes até mais de um drible. O passe tem de ser no instante exato e às vezes necessita ser surpreendente. O gol é feito pelo artilheiro que sabe, antes dos outros, aonde a vola vai chegar. Como sabe? Sabendo. Existe um saber que antecede o raciocínio lógico”. Enriquece o livro um criativo e detalhado “Dicionário Tostão de Futebol”, apresentando conceitos e notas extraídos das crônicas do autor focalizado. Embora não se trate de uma obra de fôlego, de uma pesquisa científica aprofundada, nesse Dicionário seria oportuno que os verbetes viessem com referência bibliográfica, nem que fosse para uma ligeira comprovação. Um lançamento de grande interesse, não apenas para os amantes do futebol.
Fonte: www.ideiasubalterna.blogspot.com/
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