sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Os centuriões da ‘ditabranda’ na hora da verdade

Antônio Manoel Góes*
No governo FHC, dois projetos para regulamentação dos direitos coletivos e individuais, preconizados na Carta de 1988, foram o pano de fundo da polêmica recém-ocorrida em Brasília. Eram os PNDH-Plano Nacional de Direitos Humanos, 1 e 2, que visavam a destrinchar o que a Constituição estabelecera genericamente, aperfeiçoados em sua terceira versão. Os documentos anteriores foram, sem dúvida, substanciais avanços no processo, mas com atalhos cujo objetivo nada sutil era o de não que contrariar os militares, em cujo ciclo autoritário foi criado um aparelho de repressão e tortura dos ‘inimigos’ do regime de exceção. O atual foi mais fundo e ensejou a resistência de supostos ‘intocáveis’. Nenhum sistema baseado no estado democrático de direito pode permitir, usando a linguagem da atual interação informatizada, que sejam ‘deletadas’ nódoas infamantes empregadas para combater ‘crimes ideológicos’ por ditaduras fortuitas dos pretendentes a ‘salvadores’ da pátria, em seus arreganhos furibundos contra o comunismo ‘internacional’ e outras falácias inerentes ao longo tempo da guerra fria. O general Geisel cunhou a ‘distensão lenta e gradual’, precavido com virtual retomada de um onda de ‘excessos libertários’, agarrado à tese do ‘devagar se vai ao longe’. A corda foi esticada até 1979, quando saiu uma Lei de Anistia capenga, que ensejou o retorno de ilustres personagens da política, ciências e afins, banidos pelos famigerados Atos Institucionais como ‘personas non gratas’ da Nação. Mas a interpretaram como inclusiva das sevícias do aparelho repressor estatal, sob a desculpa de ‘combater a subversão’. Passaram a borracha nos torturadores e ponto final. Acontece que, em todos os países ditos ‘civilizados’, a tortura é delito imprescritível e é aí que o bicho pega. Na realidade, o país fora transformado num imenso quartel de 8 milhões e meio de quilômetros quadrados, onde as excelências fardadas passaram a donas absolutas da verdade, com poder de vida e morte sobre os cidadãos à paisana. A exemplo de Hitler, que previa o ‘Reich dos mil anos’ e só durou quinze, nossos oficiais-generais das três armas estabeleceram um consórcio na caserna, revesando-se no comando do Planalto, onde ruminariam e decretariam todos os editos de caráter imperial, avalizados por um Congresso ‘permitido’, desde que não sonhasse em pisar em seus engraxados coturnos. Face ao ‘assanhamento’ de alguns parlamentares, as casas congressuais foram fechadas duas vezes por não fazerem o dever de bancada. Deputados e senadores cassados, dadas suas idéias ‘esquerdizantes’ e ‘alienígenas’, que não se ‘coadunavam’ com os valores ocidentais(e cristãos) da ‘Terra de Santa Cruz’. Implementou-se a lei do ‘ame-o ou deixe-o’, impondo-se uma definitiva saída: sermos todos ‘vaquinhas de presépio’ no imenso pastoril de horrores que podou os ainda incipientes arremedos de conquistas sociais do governo Goulart ou, caso contrário, darmos no pé, numa escapada sob tiros na nuca e a justificativa de que teríamos caído no enfrentamento subversivo com ‘a lei e a ordem’. Embora, pessoalmente, limitado à contraposição abortada contra o 1º de abril, em Palmeira dos Índios(Alagoas), casado, aos 21, com duas filhas bebês, Isabel e Cláudia, atravessei anos a fio desconfiado de que poderia acabar demitido do Banco do Brasil, preso e levado para degredo nas masmorras de Recife e Fernando de Noronha. Passei ileso, até pela inexpressividade do que era, um desconhecido ‘aprendiz-de-marxismo’ do agreste-sertão alagoano. Todavia, foi um estágio de quase duas décadas e meia de impotência contra os que usurparam nossos ideais de edificar um país com uma multidão de ‘joões-da-silva’ encarnando a figura rebelde do ‘operário em construção’ de Vinicius de Moraes, que teria aprendido a dizer ‘não’. A organização de trabalhadores foi varrida do mapa, execrada como inspiradora de uma ‘república sindicalista’ a soldo de Moscou, Havana e Pequim, perigo iminente à preservação da sacrossanta propriedade privada. Na realidade, nossos generais fizeram mais uma vez o jogo do ‘grande irmão do norte’, de olho na apropriação de nossas potencialidades, à época um país com população majoritariamente campesina. Daí terem acelerado, no pós-1964, o êxodo rural, fechando as portas à agropecuária familiar que sustentava os pequenos produtores dos grotões, enxotados para as metrópoles, de preferência no ‘sul-maravilha’, onde terminaram vítimas do odioso ciclo da favelização nos grandes e médios centros urbanos. Afinal, era preciso tocar a produção fabril com mão-de-obra barata e trocá-la por espelhinhos e outros penduricalhos no mercado externo. O ‘milagre’ brasileiro mandava-nos de volta, em nossa indolência indígena, ao remoto tempo de Cabral e Vaz de Caminha. Enquanto os jogadores brasileiros, de cabelos cortados no estilo ‘reco’, abiscoitavam a Copa no México, com a comissão técnica e o comando da seleção dando 'ordem unida' em Pelé e companhia, Garrastazu Médici mandava os ‘órgãos de segurança’ liquidar jovens insurretos(e idealistas), inconformados com o ‘trancamento’ do regime. Os militares achavam-se (e ainda se acham hoje em dia, pode crer) ‘mais preparados’ do que os civis para pensar o modelo de Brasil que interessa aos bolsões massacrantemente majoritários de ‘paisanos’. Lembro-me de um subgerente, antigo aluno do Colégio Militar, no BB-Botafogo, onde trabalhei a partir de 1971, que simplesmente idolatrava os oficiais(de capitão para cima) da Escola de Estado Maior, na Praia Vermelha. Todos beneficiários de ‘cheque-ouro’ no limite consentâneo com suas estrelas, gemadas ou não. Eram, na verdade, amáveis, educados, aguardando o atendimento, entre um cafezinho e outro, nas poltronas estofadas onde a ‘clientalha’ não tinha vez. Também, pudera! Naquele ‘bem-bom’ de facilidades garantidas pelo manjado ‘sabe com quem está falando...’ Cito esse lado, digamos, permissivamente ‘ameno’ dos anos de chumbo para lembrar o competente desempenho midiático ‘oficial’ naquela época de ‘Pra frente, Brasil!’ Afinal, ganhamos uma Copa do Mundo, com Dadá ‘Maravilha’, indicado pelo dedo ‘linha-dura’ de Médici, no banco do escrete canarinho e festejamos nas ruas cantando a marcha de Miguel Gustavo, logo transformada em dobrado nas bandas de música dos batalhões. O espírito da decantada ‘superioridade’ castrense pairava sobre nossas cabeças, prenunciando longevidade à intentona de 1964, glorificada como ‘revolução redentora’ nos veículos de comunicação, apoiadores do golpe contra Jango. Agora, na primeira década do século vinte e um, aguça-nos o desejo de conhecer a ‘verdade’. Qual a razão de terem surgido organizações clandestinas de brasileiros revoltados com aquela ‘democracia mais ou menos relativa’, uma ‘ditabranda’(como escreveram na Folha de São Paulo, recentemente) diante do chileno Pinochet e gorilas argentinos, que trucidaram milhares, a maioria deles até hoje insepultos? Aqui, entretanto, nossos ‘inefáveis’ militares, acolitados por uma horda de civis dignos da tenebrosa Gestapo do ‘fuhrer’ chucrute, patrocinaram ‘aulas práticas’ nos DOI-Codi, onde, por exemplo, no Rio de Janeiro(rua Barão de Mesquita-Tijuca, atual regimento da P.E.), o deputado Rubem Paiva teria sido torturado, morto e esfolado, depois de resistir aos interrogatórios, homenzarrão que era, de dois metros de altura e força descomunal. É pertinente nos interessarmos em saber das barbaridades que os cândidos velhinhos de hoje, dóceis e faceiros, incapazes de matar um mísero pernilongo, cometeram décadas atrás, quando eram moços e vigorosos, contra patrícios discordantes da quartelada que apeou do poder constitucional um presidente eleito(originariamente como ‘vice’) pelo voto consagradoramente popular. Queremos que paguem pelas atrocidades contra seus prisioneiros, manietados, indefesos, destroçados no pau-a-arara, sob o furor covarde de choques provocados por condutos energizados e introduzidos em retos e vaginas, além de seios deixados em carne viva pela brasa de charutos do Fleury e outros facínoras menos votados. A recente chiadeira, face ao projeto para regulamentação de Direitos Humanos inseridos na Lei Maior e à insólita ameaça de sublevação de comandantes militares contra o presidente Lula, chefe supremo de nossas Forças Armadas até 01º de janeiro de 2011, conduz-nos a uma chula e velha máxima que encerra a mais cristalina das verdades: ‘Pimenta no...dos outros é refresco’.
*Antônio Manoel Góes é Jornalista e integrante de movimentos sociais.

2 comentários:

Anônimo disse...

jornalista, militante dos movimento sociais e principalmente, comunista que não aprende e não esquece.

MAM

Pedro Bueno disse...

Certa midia dá apoio como antes de 1964. Foi assim que tudo começou. Mas por outro lado, grande parte da população tem outros meios de permear se suas ideias estão certas. A midia não é muito confiável. Há dúvidas e nós hoje podemos analisar melhor o recado que nos querem dar.