Genioso gênio da aquarela
Cidade de Ubá quer memorial em homenagem a Ary Barroso
Intenção é selar, definitivamente, o vínculo do compositor com a terra onde nasceu e aprendeu a tocar piano
Maurício Lara - Estado de Minas
Ubá-MG - Em carta ao então deputado federal ubaense Ary Gonçalves, em 1957, o compositor Ary Barroso declara todo seu amor à terra natal: “Só eu sei quanto estimo minha terra natal e quanto dela me recordo nos meus momentos de inquietação sentimental. Recordação pura e santa”. E, referindo-se ao sucesso na carreira, escreve: “Minha vitória foi produto daqueles banhos de sentimentalismo, de poesia e romance que Ubá me deu na infância e juventude”.
Mas o motivo da carta era justificar a recusa em participar das comemorações do centenário da cidade. O autor de Aquarela do Brasil estava magoado porque a Câmara Municipal não aprovara um projeto que dava seu nome a uma rua. “Ora, se meu nome não foi digno de figurar numa placa de rua de Ubá, minha figura física não deve interessar também. A política de Ubá fechou-me as portas da cidade onde nasci”, queixou-se. Na correspondência ele avisa que só voltaria discretamente: “Irei a Ubá, sim. Tenho que ir, porque Ubá é muito de minha vida, faz parte de minh’alma. Irei, porém, sozinho, anônimo”.
O rompimento não foi definitivo. Em 1959, Ary Barroso voltou e aceitou as homenagens. Foi inaugurar o monumento Clave de Sol, na Praça das Mercês, e a Avenida Ary Barroso, no Bairro Jardim Glória. A visita foi registrada pelo fotógrafo Geraldo Mazzei, que acompanhou o compositor até na inauguração de uma nova caixa d’água, ouvindo dele a pergunta irônica, enquanto soltava foguetes: “Você acredita que essas fotos vão sair no New York Times?”
Há mais histórias a respeito dessa passagem por Ubá. A Clave de Sol, inaugurada durante o dia, recebeu a visita do compositor e amigos na madrugada. Saindo de um bar, Ary convocou o grupo: “Se é para inaugurar, então vamos inaugurar”. E foi fazer xixi no monumento, nem tão às escondidas. Mesmo sem ter, até hoje, implantando um memorial a Ary Barroso, a cidade não deixa de cultuar o filho. Na Praça Guido Marliére, em frente à antiga estação ferroviária, há um busto do compositor, inaugurado em 1979, com a inscrição: “Gênio da música popular brasileira”. E a certidão de nascimento está emoldurada na antessala do gabinete do prefeito.
A data de nascimento, 7 de novembro, é sempre comemorada com solenidades, concurso de redação nas escolas e homenagem das emissoras locais. A Câmara Municipal entrega o prêmio Amigos do Patrimônio Cultural e a Comenda Ary Barroso, sob o fundo musical de Aquarela do Brasil. E uma lei municipal determina que, em todas as solenidades públicas, depois da execução do Hino Nacional, seja reproduzida a Aquarela do Brasil.
Nas ruas, a população debate. “Eu dou valor. Foi um grande homem. Só a Aquarela do Brasil basta”, diz o taxista Irival Luiz, que faz ponto diante do busto do compositor. Ele mesmo relativiza: “Uma parte dos moradores não gosta dele. Acha que Ary não deu a Ubá a importância que a cidade deveria ter”. O estudante Rafael de Oliveira Olímpio, de 11 anos, sabe quem é o conterrâneo: “É um cara que tocava piano e era daqui. Aprendi na escola que ele fez Aquarela do Brasil”. O pipoqueiro Roberto Carlos dos Santos, de 40, entusiasmado, cantarola a música e diz: “Ary Barroso é o nosso saudoso, é o patrimônio da nossa cidade”.
Mas a vendedora Tânia de Mendonça, de 35, sabe muito menos: “Esse nome para mim não é estranho”. Diferente do comerciante Rhuan Carlos da Silva, de 22: “Deveria haver um lugar com os pertences dele. As pessoas iam conhecer mais. O pessoal de fora sabe mais a história dele que o daqui”. O lugar para “os pertences”, no entender do prefeito eleito Vadinho Baião, poderia ser o Ginásio São José, onde está montada a exposição permanente das fotos de Geraldo Mazzei na visita de 1959.
Ary Barroso, quando estudante, segundo o secretário do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Ubá, Levindo Barros, foi expulso da escola. “Ele era rebelde”, justifica. O ginásio é tombado pelo município e a diretora, Altair Paixão Carneiro, gosta da idéia, acalentada pelo novo prefeito, de instalar lá o memorial. “Seria um ponto de atração”, diz. Vadinho Baião anuncia que vai buscar financiamento para instalar o memorial, por avaliar que “Ubá não guarda a memória de Ary Barroso como deveria”.
“Ary Barroso pertence a Ubá e o município não abre mão da glória de ter sido seu berço”, diz Levindo Barros. Para ele, “o acervo pode não estar aqui, mas a certidão de nascimento está”. O piano alemão Ritter Halle, no qual Ary Barroso, aos 7 anos, tirou as primeiras notas musicais, também está em Ubá, na casa da prima, Lúcia Thereza Doyle, de 73 anos. Tombado pelo patrimônio municipal, o piano espera um lugar definitivo, quando o memorial for instalado. “Ele está bem desafinado”, avisa Lúcia. Sobre o piano onde Ary aprendeu com a tia Ritinha estão fotos da família. A expectativa é de que, quando houver um lugar definitivo, a família ceda o acervo ao município. Procurada pelo Estado de Minas, a família de Ary Barroso não se manifestou.
Uma das queixas dos moradores seria a de que Ary Barroso não fez uma música homenageando Ubá, como Roberto Carlos fez para Cachoeiro do Itapemirim e Ataulfo Alves compôs para Miraí. Lúcia Doyle diz que ele, na adolescência, fez e não quis divulgar uma marchinha que falava assim: “Ubá, Ubá, êta Ubá...”.
Com ou sem música para a terra natal, todos reconhecem que a cidade ficou conhecida por intermédio da obra dele. Geraldo Mazzei conta que, em 1958, estava hospedado em um hotel no Rio e pediu uma ligação para Ubá. E que ficou feliz quando a telefonista comentou: “Sei, é a terra do Ary Barroso”.
Perfil
Ary Barroso nasceu em Ubá, na Zona da Mata, em 07 de novembro de 1903. Ficou órfão aos 07 anos e foi criado por tias. Aprendeu a tocar piano com a tia Ritinha. Aos 18 anos, foi para o Rio de Janeiro estudar direito, mas nunca exerceu a advocacia. Passou a comandar programas de rádio em 1933 e, depois, foi para a televisão, com programa de calouros. Foi também locutor esportivo. Aquarela do Brasil, composta em 1939, é sua música mais conhecida. Outras são Na batucada da vida, Camisa amarela, Morena boca de ouro e Na baixa do sapateiro. Ary Barroso morreu no Rio de Janeiro, em 09 de fevereiro de 1964.
Um comentário:
Eu,sou morador de Ubá, e confesso que, antes de ler esse artigo, julgava o Ary por não "gostar" da cidade e agora vejo que eu estava errado. Belo trabalho!
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