segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Viaduto das Almas

Viaduto das Almas está entregue ao esquecimento e ao silêncio de sua trágica história
Desativada, estrutura em curva conhecida como uma das mais traiçoeiras armadilhas da BR-040 foi integrada ao patrimônio da União, mas hoje se degrada em lento abandono

  Inaugurado em 01º de fevereiro de 1957, ele não tem vida própria e, mesmo não sendo capaz de tomar decisões, começou a ganhar fama de matador em 20 de julho de 1958. Naquele dia, o pequeno fazendeiro José Alves foi o primeiro a perder a vida ao tentar atravessá-lo, ao volante de uma caminhonete. O Viaduto Vila Rica, mais conhecido como Viaduto das Almas, que se tornou tristemente célebre ao produzir viúvas e órfãos em série, hoje está entregue ao esquecimento e ao abandono. Nem espírito dos mortos atribuídos à sua existência ousa frequentá-lo, nem sequer nas noites claras de lua cheia.

Tem-se a impressão de que o Vila Rica, fechado ao tráfego desde 26 de setembro de 2010, apodrece mais rapidamente do que quando os pneus das carretas limavam seu asfalto e lambiam as baixas e frágeis muretas de proteção. Percorrer seus 262 metros, hoje, só a pé ou pedalando. Somando sua extensão aos pedaços da BR-040, nas duas cabeças de pista, lacrados depois da inauguração do Viaduto Engenheiro Márcio Rocha Martins, a caminhada, a passos lentos, dura cerca de uma hora.

Eucaliptos emolduram o passeio de quem ousa desafiar seu silêncio nos dias úteis. Nos fins de semana, bando de jovens leva a algazarra ao viaduto. Os 30 metros de altura são propícios à prática de rapel. O vento que desce das montanhas raramente dá uma trégua às folhagens. A natureza começa a tomar conta do espaço que estava emprestado ao homem. A chuva deposita terra, folhas e pedregulhos sobre o asfalto e o piso do viaduto.

A única lembrança de que ali passavam milhares de veículos por dia, além da estrutura de concreto, é um pedaço de mola deixado por caminhão numa das temidas descidas rumo à estreita pista do Vila Rica. Tão estreita que é difícil imaginar que por ali cruzavam-se carretas de 30 toneladas e ônibus com até 50 passageiros. Impossível não pensar em tragédias, como a que levou a atriz Zélia Marinho e mais 13 pessoas, em 1967, e o que tirou a vida, dois anos depois, do cantor Mário Albertini e mais 29. Zélia e Mário eram estrelas da TV Itacolomi.

O vento, único a interromper o silêncio, derruba um eucalipto magro sobre a pista. Um recado para lembrar que ali, velocidade e força agora é só com ele. As quaresmeiras, floridas entre as árvores, amenizam o clima lúgubre. E dá medo percorrer, mesmo a pé, os maltratados e corroídos 262 metros de concreto. No que sobrou das muretas, as provas do improviso: fios de arame e pedaços de madeira ajudavam a segurá-las naquele tráfego infernal.

O que não era visível sob as rodas de pelo menos 20 mil veículos diários torna-se claro na encurvada solidão de concreto. No meio da pista, uma fissura de lado a lado. O Viaduto das Almas estava realmente condenado. Se não estivesse interditado, a conta dos mortos certamente subiria. Nos 53 anos do elevado, o Estado de Minas contou as histórias de 75 mortos. Foram quase 200, na estimativa da Associação Brasileira dos Caminhoneiros. A Polícia Rodoviária Federal e o Dnit não tinham, na época, estatísticas sobre o número de vítimas de acidentes no viaduto.

Sob a estrutura macabra, o Córrego das Almas, do qual tiraram o nome para apelidar o Vila Rica, corre límpido e sem culpa. Suas parcas águas já não precisam mais lavar o sangue das tragédias. A não ser que o novo viaduto seja também sufocado e se transforme em matador. O Viaduto Vila Rica, que não suscita nenhuma boa lembrança, saiu das mãos do Dnit. Está, agora, integrado ao conjunto do patrimônio arquitetônico da União. Ninguém sabe o que será feito dele.

Obra de arte inaugurada com orgulho
O Viaduto Vila Rica, ou Viaduto das Almas, nasceu na BR-3, batizada de 040 em 1964. Está no km 592 da rodovia, entre os municípios de Itabirito e Congonhas, na Região Central. Ganhou fama de traiçoeiro em uma estrada que teve seu traçado perigoso cantado até em festival da canção, na voz de Tony Tornado. E foi batizado em1º de fevereiro de 1957 com muita pompa pelo presidente Juscelino Kubitscheck (1902-1976) e o governador José Francisco Bias Fortes (1891-1971). Os dois percorreram os 262 metros do elevado em um carro luxuoso. JK não escondia o orgulho. Estava entregando à nação uma grande passagem para o progresso do Brasil.

A inauguração ganhou as páginas dos jornais e os microfones das emissoras de rádio do país, como contou o repórter Paulo Henrique Lobato no caderno especial publicado pelo Estado de Minas na data comemorativa dos 53 Vila Rica. A imprensa internacional também abriu espaço, não para o evento, mas para a obra. A estrutura de concreto em curva, destacando-se na paisagem, chamou a atenção de arquitetos estrangeiros. A admiração não significava aprovação para o uso do viaduto, ainda considerado um atrativo, como disse o arquiteto Márcio Damázio Trindade ao caderno especial.

Em1982, a BR-040 ganhou pista dupla em trechos movimentados, mas os viadutos continuaram estreitos e a carnificina não parou. Parentes de pessoas que perderam a vida em tragédias queriam apelidá-lo de Viaduto da Morte. Mas o que ficou e marcou foi Viaduto das Almas. Não pelos mortos, mas para lembrar o curso de águas claras que corre sob a estrutura: o Córrego das Almas. Não houve como não surgir uma história macabra sobre a passagem de nove metros de largura, construída em curva, que começou com o peso de menos de 1 mil veículos por dia, quando as carretas não eram tão grandes, e chegou a suportar os quase 20 mil automóveis que o atravessavam diariamente poucos antes da aposentadoria.

Matador ou não, o Viaduto das Almas, um dos orgulhos do currículo JK, é, sem dúvida, uma obra de arte abandonada, corroída, que a história da arquitetura pode perder se a União não assumi- lo como patrimônio. Até mesmo o Córrego da Almas, incrivelmente limpo, corre risco com a ocupação de áreas no entorno. Uma das cabeças de pista (trecho de cerca de 800 metros da antiga estrada) já tem outro uso: é estacionamento de caçambas transportadoras de minério.
Fonte: www.uai.com.br/

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