segunda-feira, 26 de março de 2012

Mulheres na sociedade

Nas primeiras décadas do século passado, escritoras e educadoras ajudaram a construir a cultura de Juiz de Fora

Década de 1930. Governo Vargas. Os intelectuais discutiam e implementavam um novo país. Em meio ao turbilhão de mudanças que atingia política, arte e educação, as mulheres tomaram para si novos papéis. Nessa época, inúmeras figuras deixaram marcas na história da cidade. Como observa a doutora em ciência e cultura Vanda Arantes do Vale, educadoras e escritoras despontaram no cenário urbano local, dispostas a ocupar outros espaços.

1918 - 1973
Na primeira metade do século XX, ousada era a mulher que se dedicava à escrita. Em um futuro próximo, o cenário se transformaria, mas foi preciso que muitas pioneiras insistissem em grafar pensamentos e ideias. Nascida em 1918, Cosette de Alencar se deparou com um segundo desafio literário. Seu Pai, Gilberto de Alencar, era escritor respeitado. "Foi duplamente difícil para Cosette despontar nas letras", explica a professora e doutora Moema Rodrigues Brandão Mendes, pesquisadora do acervo da família Alencar. De acordo com ela, a autora de "Giroflê, giroflá" se destaca na história cultural local, tendo escrito uma única obra. Suas crônicas, entretanto, são inúmeras e, segundo Moema, apresentam considerável riqueza intelectual. "Deve-se levar em conta que essa qualidade enfrentava adversidades do dia a dia, pois Cosette trabalhava para o 'Diário Mercantil'. Ou seja, o texto tinha que sair." Em 1967, foi considerada a melhor cronista de Minas, com publicações na imprensa de Belo Horizonte, São João del Rei e Rio de Janeiro.

Moema ressalta ainda as correspondências trocadas pela autora juiz-forana com outros literatos, como Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meirelles. Entre os assuntos, chamam a atenção comentários sobre a produção dos interlocutores. Com a morte de Gilberto, a filha, ex-diretora da Escola Normal, assumiu a biblioteca do pai, constituída de três mil volumes, manuscritos de obras publicadas e de duas inéditas. "Ela não tinha intenção de se projetar no futuro. Mas, como todo escritor, guardava papel e, com isso, a memória", diz a pesquisadora. Fernando de Alencar, irmão de Cosette, e a esposa Dóris Marlene Rocha de Alencar foram os responsáveis pela organização do acervo, que hoje se encontra no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm). Cosette dá nome à escola municipal do Bairro Santa Catarina. "Uma homenagem que se refere à educadora. Quanto ao seu valor literário, faltam reconhecimentos por aqui", observa Moema.

Cleonice Rainho escrevia o tempo todo. Sempre sentiu-se atraída pela página em branco. Wanderley Luiz de Oliveira, autor da biografia "Cleonice Rainho, a busca e o encontro", comenta que a escritora, nascida em Além Paraíba, não costumava frequentar festas e jantares. Preferia o incessante trabalho. Por conta dele, viajou pelo Brasil e por vários países, tendo estudado na Universidade de Lisboa, em Portugal. Sua ligação com a pátria colonizadora, aliás, concretizou-se na fundação, em 1955, da Associação de Cultura Luso-Brasileira, dirigida por ela até 1980. "Fiel às origens, Cleonice se preocupou em resgatar as tradições portuguesas", salienta Oliveira.

Autora de cerca de 30 obras, herdou do pai, Antônio Gonçalves Rainho, o pendor para a poesia. Ao longo da carreira, a escritora - que passou a vida ao lado do marido, Jacy Thomaz Ribeiro, já falecido - atuou ativamente na imprensa e nos movimentos culturais regionais, teve trabalhos traduzidos para mais de dez idiomas e recebeu inúmeros prêmios. "Ela não está na mídia, mas faz parte do imaginário local e é respeitada nacionalmente e no exterior", observa o biógrafo. Professora emérita da UFJF e Cidadã Honorária de Juiz de Fora, Cleonice parou de escrever há uma década. No último dia 15, completou 97 anos. "Trata-se de uma vida de dedicação. Ela produziu muito, em verso e prosa. Foi professora severa, mas com coração de ouro", elogia Oliveira, sinalizando que a autora só não se envolveu com a dramaturgia pois faltou tempo.

Coordenadora da Sociedade Filarmônica de Juiz de Fora, Maria do Carmo Volpi de Freitas agia com firmeza. Atrás da postura enérgica, entretanto, escondiam-se afabilidades oferecidas aos músicos. "Raro era o ensaio no qual ela não trazia lanche para um, roupa para o outro", lembra o maestro Ciro Tabet, que conviveu com Dona Carminha, como era conhecida por aqui. Formada em direito, atuou também como professora e escritora, fazendo parte das Academias de Letras de Juiz de Fora e Mineira, em Belo Horizonte. Trabalhou nos colégios São José (atual Vianna Jr.) e Granbery. De acordo com Ciro, a Filarmônica mantinha agenda considerável de apresentações sob o comando da advogada, casada com o presidente da instituição, José de Freitas e Silva. "Dona Carminha movimentava as promoções musicais. Dos quadros da entidade, saíram elementos que fundaram escolas e grupos."

Natural de São João Nepomuceno, ela foi também uma das fundadoras da primeira faculdade de direito da cidade. Tornou-se bastante conhecida entre artistas, alunos e advogados. "Ela marcou o cenário local na época", assegura Tabet, ressaltando as dificuldades superadas pela eterna parceira. Como a Filarmônica sempre teve ações gratuitas, muitos recursos saíam do bolso da coordenadora. Na opinião de Vanda Arantes do Vale, o exemplo de Dona Carminha abre as portas para uma necessária pesquisa acerca da música em Juiz de Fora. Vanda destaca ainda a posição da advogada na sociedade: "casada com um homem intelectualizado, ela buscou mais espaço para a atuação feminina".

Maria do Céu
1902 - 2002
Destemor e acolhimento. Em tempos de ditadura militar, Maria do Céu Corrêa Mendes lidava com armas responsáveis por transformá-la em uma figura icônica de Juiz de Fora. Como menciona a cientista social Shirley Lucindo Torres, que conviveu com a educadora, ela acreditava firmemente na liberdade de expressão. "E isso antes de modismos do politicamente correto." Segundo Shirley, um momento marcante se deu em meados dos anos 1960, na antiga Faculdade de Filosofia e Letras de Juiz de Fora (Fafile), onde Maria do Céu atuou desde os primeiros anos. Uma professora de antropologia foi censurada por citar, em sala de aula, a teoria da evolução. "Dona Maria do Céu manteve um posicionamento firme a favor da acadêmica. Aquilo me marcou profundamente."

Já na década de 1970, a educadora - que frequentou a Universidade Livre do Porto, em Portugal - participou da criação da revista "Hora", do curso de Letras da UFJF. "A publicação estava equiparada ao que havia de melhor no Brasil", comenta Shirley, enfatizando que o projeto nasceu em um cenário árido. Aliás, qualquer proposta que chegasse à professora encontrava meios de germinar. Ela abriu as portas da própria casa para discussões e atividades culturais. Assim surgiu o Centro de Ação Cultural (CAC). "Dona Maria do Céu se expressava através do acolhimento de ideias e da generosidade", atesta Shirley. De acordo com ela, a educadora, que morreu aos 100 anos em 2002, também marcou a história da cidade ao defender a preservação do patrimônio público e lutar pela anistia de presos políticos. "A presença dela nos julgamentos tinha significado, por conta de seu prestígio." Embora tenha sido reconhecido em vida, segundo Shirley, a figura merece ser estudada. "Falta uma biografia", apregoa. A professora Vanda Arantes do Vale completa: "o CAC também carece de pesquisas aprofundadas".

Em seu gabinete no Museu Mariano Procópio, Geralda Ferreira Armond Marques seguia noite adentro. "Muitas vezes, foi preciso mandar buscá-la", menciona o atual diretor da instituição, Douglas Fasolato. De acordo com ele, são inegáveis os esforços de Geralda, no cargo entre 1944 e 1980. Entre suas ações, está a organização de impressos e manuscritos, possibilitando a abertura da biblioteca e do arquivo do museu ao público. "Ela nos deixou importantes instrumentos de pesquisa. Fez tudo o que era possível na época", atesta Douglas, informando que a fundação vem reeditando internamente um guia histórico desenvolvido pela ex-diretora.

Também poeta e conferencista, Geralda assumiu o comando do museu após a morte de Alfredo Lage, seu primo. Antes disso, era colaboradora assídua. "Ela, porém, não é uma unanimidade. Alguns criticam seu posicionamento político. De qualquer forma, é preciso recuperar sua memória e reconhecer sua dedicação", sinaliza Fasolato. Na gestão de Geralda, o prédio Mariano Procópio foi ampliado, e a Villa Ferreira Lage, reorganizada. Rangel Coelho, no livro "Meu barro municipal", de 1977, aponta a falta de dinamismo da instituição no período, mas defende a ex-diretora. Durante o III Encontro Luso-Brasileiro de Museus-Casas, da Fundação Casa de Rui Barbosa, a museóloga Lygia Martins Costa também enfatizou o devotamento de Geralda: "quantas lutas, compenetrada de sua missão, teve pela frente."
Fonte: TM

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