segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

GRAMÁTICA DE ERROS

por José Augusto Carvalho*

Perguntaram-me uma vez se existe algum livro que ensine a prever e a normatizar a ocorrência de desvios gramaticais. Por razões alheias à minha vontade, só conheço um único livro a respeito: La Grammaire des Fautes, de Henri Frei, publicado em 1971 pela Slatkine Reprints, de Genebra. Um artigo de Milton Azevedo, intitulado “O papel da análise de erros no ensino de idiomas”, publicado no número 779-80, do Suplemento Literário de Minas Gerais, edição de 5 a 12 de setembro de 1981, trata exclusivamente da regularidade dos erros cometidos por falantes de português na aprendizagem do inglês segunda língua, por força da competência transitória na língua estrangeira.

A base de uma gramática de erros está exatamente na analogia, que ocasiona uma certa regularidade na... irregularidade. Quando diz “eu trusse”, por “eu trouxe”, o falante do português se baseia numa quarta proporcional: “fui” está para “foi”, assim como “trusse” (pronúncia popular estigmatizada da forma “trouxe”, da 1ª pessoa do pretérito perfeito do verbo “trazer”) está para... “trôsse” (pronúncia usual de “trouxe”, 3ª pessoa). Também é por analogia com verbos como “digiro/digere”, usado por Fernando Collor em agosto de 2009, num entrevero agressivo com o senador Pedro Simon, que o povo diz “vivo/veve”, na conjugação do verbo “viver” no presente do indicativo. De fato, são muitos os exemplos em que a vogal alta tônica (i,u) de um verbo, na 1ª pessoa, corresponde, na 3ª pessoa, a uma vogal média fechada (ê,ô) no pretérito perfeito e a uma vogal média aberta (é,ó), no presente do indicativo: tive/teve; estive/esteve; pus/pôs; fui/foi; pude/pôde; fiz/fez; sinto/sente, tusso/tosse; firo/fere; sirvo/serve; sigo/segue; etc.

A hipercorreção também pode ser causa da regularidade de um erro. Hipercorreção é o erro proveniente da tentativa de se atingir a norma culta urbana. Daí o nome “hiperurbanismo” por que também é conhecida a hipercorreção. Por ouvir uma pessoa culta pronunciar –lh– onde ele diz –i–, como “trabalha”, que ele pronuncia “trabaia”, um falante pouco escolarizado, acreditando ser “errado” dizer “teia de aranha” ou “pia de cozinha”, poderá dizer “telha de aranha” ou “pilha de cozinha”, ao tentar falar “bonito”.

O difícil, às vezes, é descobrir a analogia que levou à hipercorreção. Um aluno escreveu, num trabalho, que “o rapase era amigo de infância”. Ele queria dizer “rapaz”. Muitas vezes, a hipercorreção resulta numa forma linguística que não existe nem no dialeto culto, nem no dialeto do falante que comete a hipercorreção. Só por acaso descobri a razão desse “rapase”, que certamente não retratava a pronúncia do aluno nem a de ninguém de sua sala. O aluno pronunciava “quase” como “quais” (“Eu estava quais caindo...”). Como ele escreve “quase”, mas pronuncia “quais”, achou que deveria escrever “rapase”, porque pronunciava “rapais”.

Ao dizer “rúbrica” em lugar de “rubrica” (subst.), o falante se baseia no fato de que muitas vezes a forma nominal se distingue da forma verbal apenas pelo fonema de intensidade (tasema), isto é, pela mudança de posição do acento tônico (o nome “tônico” é impróprio, já que não se trata de tom, mas de intensidade), como em: tráfico/trafico; trânsito/transito; mágoa/magoa; crédito/credito; confidência/confidencia; cálculo/calculo; fábrica/fabrica; comércio/comercio; etc. Ao dizer “magérrimo”, por “macérrimo” (superlativo de “magro”) , o falante também comete uma hipercorreção já abonada pelos dicionários (analogia com negro/nigérrimo). O melhor seria dizer “magríssimo” que, além de correto, é menos “esnobe”.

Outro caso interessante a estudar é o da hipercaracterização, isto é, a caracterização do que já está caracterizado. Em “algodoal” ou em “cafezal”, há apenas uma ocorrência (normal) do sufixo al. Mas, em “milharal”, o sufixo se repete: “milhalal” (com dissimilação da lateral l da primeira ocorrência do sufixo). Em “grandessíssimo”, o sufixo “-íssimo” se repete (como em “satisfeitissíssimo”), como a preposição “com” em “comigo” (do latim “cum me cum”). Também é por hipercaracterização que se diz “irei sair”, por exemplo, em lugar de “vou sair”. Como “vou sair” já é futuro, “irei sair” é futuro de futuro!

Acredito que a construção “implicar em”, um erro de regência do verbo “implicar”, que não se constrói com a preposição “em”, se deva a uma tendência dos falantes a repetir na regência a preposição que lembra ou que constitui o prefixo do verbo, como em: desdizer de, contentar-se com, perguntar por, conversar com, desfazer-se de, contar com, assistir a, concordar com, importar em, comparar com, etc. A regência usual de “assistir” sem a preposição a, com o sentido de presenciar, se deve talvez à contaminação com o verbo ver, que é transitivo direto.

No processo de aprendizagem da língua materna, a criança recorre frequentemente à quarta proporcional, na utilização intuitiva de sua gramática interiorizada: “correr” está para “corri”, assim como “fazer” está para... “fazi”, que é forma que a criança diz, apesar de não ouvi-la nem mesmo de um adulto pouco escolarizado, o que levou os linguistas a excluir a simples imitação como forma de aprendizagem da língua materna.
Acho que temos necessidade de uma boa gramática de erros em português...
*José Augusto Carvalho é mestre em linguística pela Unicamp e doutor em letras pela USP.
Fonte: http://www.blogstraquis.blog-se.com.br/

Nenhum comentário: