quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

JUBILEU DE OURO

Como foi possível?
por Luiz Carlos Martins Pinheiro*
Em 1945, com quinze anos, muito a contra-gosto, tivemos que trabalhar durante o dia e estudar a noite, ao custeio de parte de nossas despesas pessoais, continuando a ter casa, comida, roupa lavada e escola, sem nada contribuir financeiramente por isto. Estava iniciada a safra de mais três irmãos, totalizando cinco. Cursávamos o ginásio e sem nenhuma influência do nosso meio familiar e social, não sabemos bem por qual razão, optamos pelo estudo de Engenharia, desconhecendo muito o que teríamos de superar para isto. Nosso gosto pelas ciências exatas, principalmente pela matemática já aflorara. Havia apenas a ENE – Escola Nacional de Engenharia, antiga Politécnica, da UB – Universidade do Brasil, no tradicional Largo de São Francisco, no Centro do Rio de Janeiro, Capital do Brasil, cujo prédio ainda lá se encontra e a Universidade Rural, esta afastada da Capital, com Engenharia Agronômica. A disputa para ingresso na ENE se fazia por exame vestibular, disputadíssimo e por peixada. Seus cursos, praticamente, não permitiam um emprego regular, durante o dia. Então a análise de viabilidade para nós dava pouco diferente de zero. Na Rural, a coisa seria mais viável. Fizemos como boi bravo, baixando a cabeça e partindo a toda força ao nosso alvo: Engenharia. Com o pistolão do Professor Serpa, nosso contra-parente e ilustre catedrático de inglês no tradicional e disputadíssimo Colégio Pedro II, no Centro do Rio, onde, ainda, se encontra desde o seu início, mas não com o garbo de então, entramos no seu curso noturno. Nosso irmão Paulo José, o primogênito, lá já estudava. Nosso primeiro emprego, como mensageiro, foi numa pequena firma que de Engenharia só tinha o nome, pois, então se dedicava mesmo era à importação de quinquilharias que se seguiu à II Guerra Mundial (1939/1945), desbaratando as divisas que o Brasil fora obrigado a acumular no exterior durante o conflito. Um trabalho duro, exigindo mais de 8 h por dia, exceto no sábado que encerrava ao meio dia, para ganhar meio salário mínimo, sem carteira assinada. Além de não permitir estudar durante o dia, ainda, nos dificultava estar a tempo no Pedro II, cuja entrada era rigorosamente controlada. Com a ajuda de nosso irmão, muito camarada de quem controlava a entrada, este deixava a entrada livre, quando chegávamos atrasados, mas com a condição de só entrar na sala, após o intervalo da primeira aula. Para complicar, acabávamos ausentes às aulas de matemática, matéria mais temida do colégio. Note-se que tínhamos de estar rigorosamente uniformizado, como se fossemos militares. Num segundo emprego, numa empresa americana, também, conseguido por nosso pai, fomos ser auxiliar de escritório, sem trabalho aos sábados e com horário compatível com o Pedro II, mas embora houvesse momentos sem o que fazer, a chefe não nos permitia utilizá-lo para estudar, com o que não nos conformávamos, acabando sendo demitidos. Papai levou-nos então a trabalhar na canadense Ligth, onde era um empregado antigo muito bem considerado e empregara inúmeros parentes e amigos. Nossos irmãos por lá passaram. Como menor idade, éramos obrigados a cursar o SENAI, após o horário de expediente, restabelecendo a dificuldade com nossa entrada no Pedro II. Conseqüentemente acabamos estourando o máximo de faltas permitidas às aulas do SENAI, sem utilidade para nós e, fomos demitidos. Em 1948 tivemos que assumir, também, o custeio de nossos estudos. O incansável Francisquinho, nosso pai, com ajuda do nosso primo-irmão-paterno José, o Zé Pinheiro, que veio a ser nosso padrinho de casamento, em 1956, nos obteve o melhor emprego que tivemos, como auxiliar de contabilidade numa empresa norte-americana, que nos permitiu chegar ao vestibular, pagando por ele mais que pagaríamos na EPUC – Escola Politécnica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A esta altura além ENE, havia a EPUC e se criava a fluminense de Engenharia em Niterói, mas todas não nos permitiam ter um emprego regular diário. Não se admitia que um curso de Engenharia pudesse ser noturno. Seus exames vestibulares eram totalmente independentes. Tinha-se que todos pagar e não se tinha a menor garantia, que as provas não fossem simultâneas. Em 1950 iniciamos nosso relacionamento com a Marly, que durou 56 anos, sem interrupções e que nos permitiu uma luta a quatro mãos, responsável por tudo mais. No final do científico iniciamos o vestibular, à noite, num dos mais notáveis cursos à área de Engenharia, muito mais para ganhar experiência do que esperando ultrapassá-lo. Ao primeiro exame nos submetemos apenas na ENE, a título experimental, pois tínhamos consciência da nossa insuficiente preparação e não fomos além das eliminatórias. Ao segundo, novamente na ENE e na EPUC, passando nesta, graças ao fato de ter oferecido umas 130 vagas, para 1954, já que no 2º. semestre as aulas seriam no Campus que construía na Gávea. Até então eram no casarão ao lado do Colégio Santo Inácio, em Botafogo, do qual se originava grande parte dos candidatos, predominante de classe média-alta e rica, residentes na zona sul. Em 1953 continuávamos vivendo na Penha, com nossos pais e irmãs e ficamos noivo da Marly. O único acordo que conseguimos com o nosso empregador foi nos despedir, indenizando-nos na forma da lei, com o que iniciamos um negócio de mascate com ela. Cuidávamos das compras e das finanças e ela vendia, principalmente no laboratório em que trabalhava, o que deu muito certo, permitindo-nos a renda que necessitamos inclusive para pagar religiosamente a EPUC. Tínhamos que sair pela madrugada, tomando um ônibus ou um lotação até a Central para tomarmos outro à Gávea e lá estar diariamente das 7 h às 12 h. Por vezes havia aula prática à tarde e ao sábado. Não havia qualquer forma de bolsa e tão pouco restaurante. Não tínhamos condições de acompanhar o curso como a quase totalidade dos colegas fazia. Estratégias tinham que ser montadas, adiando certas matérias, para livrar outras. Só voltávamos a casa para jantar. Almoçávamos no Restaurante do Calabouço, administrado pela UME – União Metropolitana dos Estudantes, com cozinha do SAPS, quando conseguíamos chegar a tempo. Nas horas vagas íamos estudar nas bibliotecas públicas, em geral, mais pela comodidade do local oferecido. Como não podíamos comprar os livros caros adotados, nelas estudávamos em similares. Não havia empréstimo. Em 1956 nos casamos e fomos levados a participar da política estudantil, o que tudo complicou mais ainda, gerando-nos não poucas adversidades. Nossa situação se tornou uma grande incógnita, se conseguiríamos ou não acompanhar a turma. A cada série que se iniciativa haviam os que não acreditavam que não mais estaríamos. Colegas inesquecíveis, que passavam em tudo por média, espontaneamente nos cediam seus excelentes cadernos. O tesoureiro jesuíta da PUC nos deixava a vontade para atrasar o pagamento, mas poucas vezes, sempre o avisando antecipadamente, isto fizemos. Numa das cadeiras mais exigentes e que por isto tivemos que ir adiando até a última hora, para livrar outras não tão assustadoras, chegamos ao exame de 2ª. época. Não passando seria a reprovação na série. Fizemos o impossível para vencer. Na prova escrita fracassamos e fomos à oral precisando nada mais nada menos que oito. A banca examinadora, tida como das mais duras, possuía a nossa fixa, revelando ausências às aulas e resultado nas provas. Contudo, estávamos confiantes de poder conseguir. O assistente, no quadro, mandou-nos resolver exatamente a questão que nos enterrará na escrita, que era sem identificação. Caiu do céu. Em meio caminho, nos perguntou: como errou isto na escrita? Ao final, para espanto de muitos, nos deram os exatos oito que precisávamos. Na quinta e última série, nos preparando à formatura e ao nascimento de nossa primeira filha, estagiando na sede do DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, fomos surpreendidos inexplicavelmente pelo professor de matéria do 2º. semestre, muito mais de adorno do curso, tido como muito boa praça que, por meio ponto, no exame oral, nos quis colar em 2ª. época, impedindo-nos de nos formar com a turma. Destacados colegas, indignados, espontaneamente nos procuraram, nos tranqüilizando que em 18/12/1958 nós formaríamos junto a todos mais. Como o professor não cedeu foram ao Diretor, que nos orientou a pedir revisão da prova escrita e deixar o resto por conta dele. Assim, naquela noite, no ginásio que não mais existe, solenemente nos formamos em Engenharia Civil, com especialização em Edificações. Não participamos do Baile de Gala, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, não apenas por condições financeiras, mas principalmente por não concordamos com tanta pomba e devido ao adiantado estado de gravidez da Marly. Os colegas da Comissão de Formatura nos ofereceram a participação, sem nada pagarmos. Tivemos chamadas da Petrobrás para extração de petróleo em Aratu, BA, mas rejeitamos por não ser o trabalho que desejávamos e por não pretendemos sair do Rio de Janeiro. Em 1961, com a saída da sede do DNOCS do Rio, enfrentamos o desemprego, por não aceitarmos transferência ao nordeste. Fomos parar na sede do desconhecido DNEF – Departamento Nacional de Estrada de Ferros, também, na Esplanada do Castelo, bem próximo do DNOCS. Em 1974 com a extinção do DNEF, nos recusamos a ir para Brasília, passando à RFFSA – Rede Ferroviária Federal após uma dura expectativa. Aos nossos três filhos asseguramos estudos até onde chegassem, no ensino público e/ou no privado, sem a obrigação de trabalhar. Também foram importantes ao que conseguimos. Por incrível que possa parecer, transcorreu mais meio século, no qual exercemos a profissão até 01/06/1994, quando nos aposentamos definitivamente de qualquer obrigação trabalhista, funcional ou de negócio, após 49 anos de trabalhos desta natureza, para nos dedicar a trabalhos gratuitos ao bem comum. Em 18/12/2008 fomos totalmente surpreendidos por uma reunião de ´´OS ALCÂNTARAS PINHEIROS´´ comemorando a data, inclusive com nosso primeiro e único bisneto. Sem dúvidas, Deus escreve certo por linhas tortas. Na medida de nosso empenho e da Marly, certamente com a ajuda de São Judas Tadeu, foi nos abrindo portas que jamais imagináramos e que nos permitiram chegar onde estamos. É a resposta que temos à indagação inicial. *Luiz Carlos Martins Pinheiro é Engenheiro Civil

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