quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A incoerência do Rei

Marcelo Moutinho*
Figura de proa da Jovem Guarda, autor de canções que tocam no ponto mais sensível da alma brasileira, servindo de trilha-sonora a milhares de histórias de amor, Roberto Carlos receberá, no próximo Carnaval, uma merecida homenagem da GRES Beija-Flor. O feliz enredo, somado à conhecida competência técnica, à força financeira e ao poder político da escola, eleva desde já a agremiação de Nilópolis ao posto de favorita em 2011. Se confirmado, o título tornará ainda mais marcante o tributo ao artista.

A infância em Cachoeiro do Itapemirim, o sucesso com o rock que “era uma brasa, mora?”, a vitória no Festival de San Remo, a longa parceria com Erasmo, a virada romântica, cada curva da estrada por onde Roberto Carlos caminhou será lembrada na Marques de Sapucaí. E Roberto abraçou com entusiasmo a proposta da Beija-Flor, que além de tudo é sua escola de coração. Não apenas com a sinalização de que aceitava a homenagem, mas acenando com uma participação ativa: anunciou que visitará a quadra durante os ensaios e confirmou que estará no desfile da segunda-feira de Carnaval. Serão, podemos prever, 82 minutos de muita emoção.

Em meio ao reverente público que assistirá à passagem da Beija-Flor, provavelmente estará Paulo César Araújo. Historiador, autor de ‘Eu Não Sou Cachorro Não’, obra de referência sobre a chamada ‘música brega’ no Brasil, Araújo é antigo fã de Roberto Carlos. Tão admirador que dedicou 16 anos a pesquisar a trajetória do cantor e compositor que o povo, com carinho, batizou de Rei. Araújo entrevistou 200 pessoas que estiveram presentes na vida de Roberto, de uma maneira ou de outra. Tanto trabalho resultou em um livro de 504 páginas, que a Editora Planeta lançou em 2006. Roberto Carlos em detalhes rapidamente entrou para a lista de best-sellers. Foram 22 mil exemplares vendidos, e esse número cresceria muito se o biografado não tivesse recorrido à Justiça para impedir a produção e a venda da obra.

A absurda censura, que remonta a épocas sombrias, representa uma séria ameaça a futuras tentativas de se registrar em palavras a história do Brasil, de preservar nossa memória. Como a iniciativa foi do próprio Roberto Carlos, assinala também uma triste incoerência. Roberto admite ser enredo de escola de samba, mas não de livro. E, ao agir assim, restringe a biografia ao tom laudatório, à abordagem exclusivamente elogiosa, esquecendo-se de que o mito é sempre a sombra do humano. O que, para citar o título do bom samba da Beija-Flor, não combina com “a simplicidade de um Rei”.
*Marcelo Moutinho é Jornalista e Escritor
Fonte: www.odia.com.br

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